A epilepsia é um distúrbio neurológico crônico caracterizado por crises epiléticas repetidas, estas por sua vez são causadas por descargas neuronais hipersincronizadas, focais ou generalizadas no cérebro. Apresenta uma prevalência de 0,5% a 1% da população nos países desenvolvidos, e esse número pode ser maior em países em desenvolvimento. O impacto psicosocial e socioeconômico, além de problemas relacionados à independência, mobilidade, educação, emprego e relacionamentos pessoais, geram grande sofrimento ao indivíduo portador. A base do tratamento é realizada a partir da terapia medicamentosa, com drogas que atuam potencializando a ação de um neurotransmissor inibitório chamado GABA, ou diminuindo a ação de neurotransmissores excitatórios (Glutamato). Porém, cerca de um terço dos indivíduos com epilepsia não respondem ao tratamento farmacoterápico (Epilepsia Refratária), sendo nesses casos utilizado tratamentos alternativos, como a cirurgia ou dietoterapia.
Desde o tempo de Hipócrates, já se sabe que a acidose metabólica induzida pelo jejum melhora o controle de ataques epiléticos (HARTMAN et al, 2007). Dessa forma, em 1921, Wilder propôs a utilização da dieta cetogênica para o tratamento da epilepsia, pois essa dieta simula as alterações bioquímicas (cetose) associadas ao período de jejum. A dieta cetogênica consiste na ingestão elevada de gorduras e pobre em carboidratos e proteínas (NONINO-BORGES et al, 2004). A proporção de macronutrinetes utilizada na dieta cetogênica tradicional é de 3:1 ou 4:1 (gorduras:proteínas e carboidratos), ou seja 3-4 partes de gordura para 1 parte de proteínas + carboidratos. A sua utilização é indicada em casos os quais os pacientes epiléticos não respondem ao tratamento farmacológico tradicional, sendo utilizada principalmente em crianças.
A eficácia da dieta cetogênica em crianças tem sido comprovada em diversos estudos retrospectivos e prospectivos (FREEMAN et al, 1998; VINING et al, 1998; MAYDELL et al, 2001; COPPOLA et al, 2002; KANG et al, 2005; BENICZKY et al, 2009) e em um ensaio clínico randomizado (NEAL et al, 2008). Cerca 10-20% das crianças tratadas com a dieta cetogênica ficam completamente livres das crises, e até 70% podem ter uma redução de mais de 50% das crises (COURTNEY et al, 2009). Em adultos existem poucos estudos que suportam sua utilização e eficácia, isso ocorre em parte pela crença que adultos teriam maior dificuldade em aderir ao tratamento dietético tão restrito. Entretanto um estudo publicado por Mady e colaboradores em 2003 comprovou que a dieta cetogênica é eficaz e bem tolerada por adolescentes e adultos jovens. Outro estudo realizado nos EUA em 2009 sugere que tal dieta pode ser implementada com sucesso e trazer benefícios também para a população adulta (COURTNEY et al, 2009)
Mecanismos de ação da dieta cetogênica
A produção de corpos cetônicos (b-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona) é capaz de suprir as demandas energéticas cerebrais com muita eficiência na ausência de glicose. O cérebro de crianças é mais eficiente na metabolização dos corpos cetônicos do que o de adultos, uma possível explicação para o melhor efeito da dieta cetogênica em crianças (NONINO-BORGES et al, 2004). Os mecanismos pelos quais a dieta cetogênica leva à redução das crises epiléticas ainda não estão completamente esclarecidos, porém acredita-se que tal dieta potencializa ou aumenta a produção do ácido g-aminobutirico (GABA), um neurotransmissor inibitório. Uma diminuição dos níveis de glutamato, o maior neurotransmissor excitatório cerebral, pode teoricamente contribuir com a atividade anticonvulsiva da dieta cetogênica.
Segundo Maalouf e colaboradores (2007) os corpos cetônicos têm a capacidade de inibir a produção de espécies reativas de oxigênio mitocondrial (radicais livres) induzidas pelo glutamato, e esses radicais livres podem contribuir com o desenvolvimento da epilepsia. Sendo assim os corpos cetônicos produzem efeitos neuroprotetores e possivelmente antiepiléticos. Outras hipóteses incluem: Aumento na produção de neuroesteróides endógenos, e esses por sua vez agem como potentes moduladores alostéricos para os receptores GABAA (HARTMAN et al, 2007); Os corpos cetônicos podem gerar uma maior abertura dos canais de potássio sensível ao ATP, reduzindo as descargas neuronais e regulando a suscetibilidade a crises epiléticas (WEIYUAN MA et al, 2007).
Possíveis efeitos colaterais da dieta cetogênica
Os efeitos indesejados relacionam-se em geral com a intolerância à dieta (recusa alimentar), náuseas, vômitos, diarréia, obstipação intestinal e sonolência. Também podem ocorrer em longo prazo: Hipercalcemia e hipercalciúria; maior risco de infecções; aumento do teor de colesterol e de triglicérides no início da dieta; avitaminose; irritabilidade; acidose e depleção de carnitina. Uma revisão sistemática realizada por Keene em 2006 demonstrou que os efeitos adversos da dieta cetogênica são relativamente incomuns, sendo que vômitos e aumento sérico dos lipídios sanguíneos são os eventos mais freqüentes encontrados nas amostras, com 5,53% e 2,63% respectivamente. Acidose e alterações gástricas (diarréia/obstipação) ambos com 1,88% e elevação sérica de ácido úrico (1,78%) são os outros efeitos colaterais mais relatados nos estudos. Na verdade, os efeitos colaterais em longo prazo não foram amplamente estudados e publicados, e as complicações com uso da dieta cetogênica podem ser minimizados com o acompanhamento de equipe multidisciplinar especializada (RIZZUTTI et al, 2006).
Algumas alternativas à dieta cetogênica clássica tem sido propostas com a finalidade de reduzir os riscos de efeitos colaterais e de aumentar a tolerância e aderência ao tratamento, são elas: a dieta modificada de Atkins, a utilização de alimentos com baixo índice glicêmico e a dieta cetogêncica com ênfase em TCM (Triglicerídeos de Cadeia Média). A dieta modificada de Atkins é menos restritiva do que a cetogênica clássica, já que permite um maior consumo de calorias e proteínas, e dessa forma parece ser mais tolerável e ainda assim tem se mostrado eficiente no controle da epilepsia refratária (KOSSOFF et al, 2003,2006,2008; WEBER et al, 2009; KUMADA et al, 2009). A dieta com utilização de alimentos com baixo índice glicêmico é ainda menos restritiva, pois permite uma maior quantidade de carboidratos na dieta (cerca de 40-60g/dia) contanto que tais carboidratos tenham índice glicêmico menor que 50. Isso faz com que ocorra pouca variação dos níveis de glicose sanguínea e assim ainda mantenha uma considerável produção de corpos cetônicos, o que permite uma eficiência no controle da epilepsia (PFEIFER et al, 2005 e 2008; MUZYKEWICZ et al, 2009). E por último a dieta cetogênica com ênfase em TCM tem se mostrado igualmente eficiente, no tratamento da epilepsia refratária (LIU, 2008; NEAL et al, 2009). Os triglicerídeos de cadeia média (TCM) produzem mais corpos cetônicos por kilocaloria de energia produzida do que os triglicerídeos de cadeia longa (TCL), são absorvidos de forma mais eficiente, e são levados diretamente do sistema digestório para o fígado via veia portal. A grande produção de corpos cetônicos pelos TCMs significa que menos lipídios são necessários para essa produção, fazendo com que maiores quantidades de carboidratos e proteínas possam ser oferecidos na dieta, aumentando sua tolerância (NEAL et al, 2008).
Conclusão
A dieta cetogênica tem se mostrado uma terapia eficaz e segura, podendo ser utilizada como opção terapêutica coadjuvante ou alternativa para pacientes com epilepsia farmacorresistente. Os diversos estudos demonstram controle ou redução das crises em boa parte dos pacientes (principalmente em crianças) submetidos a esse tratamento. É importante salientar que a dieta deve ser individualizada e deve seguir rigorosamente as recomendações energéticas e nutricionais para cada caso, além da necessidade de monitoração dos possíveis efeitos adversos a fim de detectá-los precocemente e evitar maiores danos. É fundamental o acompanhado de equipe multidisciplinar para o sucesso do tratamento.
Referências Bibliográficas:
BENICZKY, S.; JOSE MIRANDA, M.; ALVING, J.; HEBER POVLSEN, J.; WOLF, P. Effectiveness of the ketogenic diet in a broad range of seizure types and EEG features for severe childhood epilepsies. Acta Neurol Scand. 2010 Jan;121(1):58-62.
COPPOLAG.; VEGGIOTTI, P.; CUSMAI, R.; BERTOLI, S.; CARDINALI, S.; DIONISI-VICI, C.; ELIA, M.; LISPI, M.L.; SARNELLI, C; TAGLIABUE, A.; TORALDO, C.; PASCOTTO, A. The ketogenic diet in children, adolescents and young adults with refractory epilepsy: an Italian multicentric experience. Epilepsy Res. 2002 Feb;48(3):221-7.
CROSS, J.H.; NEAL, E.G. The ketogenic diet–update on recent clinical trials. Epilepsia. 2008 Nov;49 Suppl 8:6-10. Review.
FREEMAN, J.M.; VINING, E.P.; KOSSOFF, E.H.; PYZIK, P.L.; YE, X.; GOODMAN, S.N. A blinded, crossover study of the efficacy of the ketogenic diet. Epilepsia. 2009 Feb;50(2):322-5.
FREEMAN, J.M.; VINING, E.P.; PILLAS, D.J.; PYZIK, P.L.; CASEY, J.C.; KELLY, L.M. The efficacy of the ketogenic diet-1998: a prospective evaluation of intervention in 150 children. Pediatrics. 1998 Dec;102(6):1358-63. PubMed PMID: 9832569.
FREITAS, A.; PAZ, J.A.; CASELLA, E.B.; MARQUES-DIAS, M.J. Ketogenic Diet for the treatment of refractory epilepsy. Arq Neuropsiquiatr 2007;65(2-B):381-384
HARTMAN, A.L.; GASIOR, M.; VINING, E.P.G.; ROGAWSKI, M.A. The Neuropharmacology of the Ketogenic Diet. Pediatr Neurol. 2007 May ; 36(5): 281–292.
KANG, H.C.; KIM, Y.J.; KIM, D.W.; KIM, H.D. Efficacy and safety of the ketogenic diet for intractable childhood epilepsy: Korean multicentric experience. Epilepsia. 2005 Feb;46(2):272-9.
KEENE, D.L. A systematic review of the use of the ketogenic diet in childhood epilepsy. Pediatr Neurol. 2006 Jul;35(1):1-5. Review.
KOSSOFF, E.H.; KRAUSS, G.L.; MCGROGAN, J.R.; FREEMAN, J.M. Efficacy of the Atkins diet as therapy for intractable epilepsy. Neurology. 2003 Dec 23;61(12):1789-91.
KOSSOFF, E.H.; MCGROGAN, J.R.; BLUML, R.M.; PILLAS, D.J.; RUBENSTEIN, J.E.; VINING, E.P. A modified Atkins diet is effective for the treatment of intractable pediatric epilepsy. Epilepsia. 2006 Feb;47(2):421-4.
KOSSOFF, E.H.; ROWLEY, H.; SINHA, S.R.; VINING, E.P. A prospective study of the modified Atkins diet for intractable epilepsy in adults. Epilepsia. 2008 Feb;49(2):316-9.
KUMADA, T.; MIYAJIMA, T.; KIMURA, N.; SAITO, K.; SHIMOMURA, H.; ODA, N.; FUJII, T. Modified Atkins Diet for the Treatment of Nonconvulsive Status Epilepticus in Children. J Child Neurol. 2009 Sep 24.
LIU, Y.M. Medium-chain triglyceride (MCT) ketogenic therapy. Epilepsia. 2008 Nov;49 Suppl 8:33-6. Review.
MA, W.; BERG, J.;YELLEN, G. Ketogenic Diet Metabolites Reduce Firing in Central Neurons by Opening K(ATP) Channels. J Neurosci. 2007 Apr 4;27(14):3618-25.
MAALOUF, M.; SULLIVAN, P.G.; DAVIS, L.; KIM, D.Y.; RHO, J.M. Ketones inhibit mitochondrial production of reactive oxygen species production following glutamate excitotoxicity by increasing NADH oxidation. Neuroscience. 2007 Mar 2;145(1):256-64.
MADY, M.A.; KOSSOFF, E.H.; MCGREGOR, A.L.; WHELESS, J.W.; PYZIK, P.L.; FREEMAN, J.M. The ketogenic diet: adolescents can do it, too. Epilepsia. 2003 Jun;44(6):847-51.
MAYDELL B.V.; WYLLIE, E.; AKHTAR, N.; KOTAGAL, P.; POWASKI, K.; COOK, K.; WEINSTOCK, A.; ROTHNER, A.D. Efficacy of the ketogenic diet in focal versus generalized seizures. Pediatr Neurol. 2001 Sep;25(3):208-12.
MUZYKEWICZ, D.A.; LYCZKOWSKI, D.A.; MEMON, N.; CONANT, K.D.; PFEIFER, H.H.; THIELE, E.A. Efficacy, safety, and tolerability of the low glycemic index treatment in pediatric epilepsy. Epilepsia. 2009 May;50(5):1118-26.
NEAL, E.G.; CHAFFE, H.; SCHWARTZ, R.H.; LAWSON, M.S.; EDWARDS, N.; FITZSIMMONS, G.; WHITNEY, A.; CROSS, J.H. A randomized trial of classical and medium-chain triglyceride ketogenic diets in the treatment of childhood epilepsy. Epilepsia. 2009 May;50(5):1109-17.
NEAL, E.G.; CHAFFE, H.; SCHWARTZ, R.H.; LAWSON, M.S.; EDWARDS, N.; FITZSIMMONS, G.; WHITNEY, A.; CROSS, J.H. The ketogenic diet for the treatment of childhood epilepsy: a randomised controlled trial. Lancet Neurol. 2008 Jun;7(6):500-6.
NONINO-BORGES, C.B.; BUSTAMANTE, V.C.T.; RABITO, E.I.; INUZUKA, L.M.; SAKAMOTO, A.C.; MARCHINI, J.S. Dieta cetogênica no tratamento de epilepsias farmacorresistentes. Rev. Nutr.,Campinas, 17(4):515-521, out./dez., 2004
PFEIFER, H.H.; LYCZKOWSKI, D.A.; THIELE, E.A. Low glycemic index treatment: implementation and new insights into efficacy. Epilepsia. 2008 Nov;49 Suppl 8:42-5. Review.
PFEIFER, H.H.; THIELE, E.A. Low-glycemic-index treatment: a liberalized ketogenic diet for treatment of intractable epilepsy. Neurology. 2005 Dec 13;65(11):1810-2.
RIZZUTTI, S.; RAMOS, A.M.F.; CINTRA, I.P.; MUSZKAT. M.; GABBAI, A.A. Avaliação do perfil metabólico, nutricional e efeitos adversos de crianças com epilepsia refratária em uso da dieta cetogênica. Rev. Nutr., Campinas, 19(5):573-579, set./out., 2006
VINING, E.P. Tonic and atonic seizures: medical therapy and ketogenic diet. Epilepsia. 2009 Sep;50 Suppl 8:21-4. Review.
VINING, E.P.; FREEMAN, J.M.; BALLABAN-GIL, K.; CAMFIELD, C.S.; CAMFIELD, P.R.; HOLMES, G.L.; SHINNAR, S.; SHUMAN, R.; TREVATHAN, E.; WHELESS, J.W. A multicenter study of the efficacy of the ketogenic diet. Arch Neurol. 1998 Nov;55(11):1433-7.
WEBER, S.; MØLGAARD, C.; KARENTAUDORF, ULDALL. P. Modified Atkins diet to children and adolescents with medical intractable epilepsy. Seizure. 2009 May;18(4): 237-40.
WHELESS, J.W. Managing severe epilepsy syndromes of early childhood. J Child Neurol. 2009 Aug;24(8 Suppl):24S-32S; quiz 33S-6S. Review.
WILDER, R.M. the effects of ketonemia on the course of epilepsy. May Clin Proc. 1921; 2: 307-08.
WUSTHOFF, C.J.; KRANICK, S.M.; MORLEY, J.F.; CHRISTINA BERGQVIST, A.G. The ketogenic diet in treatment of two adults with prolonged nonconvulsive status epilepticus. Epilepsia. 2009 Oct 20.