A recente descoberta de uma miocina (proteína secretada pelo músculo) vem causando euforia mundo afora, principalmente por sua promissora ação na perda de peso, regulação do metabolismo glicêmico e gasto energético, todos fatores que contribuem para o controle do diabetes e o tratamento da obesidade (Boström et al., 2012). Com isso, rapidamente revistas de circulação nacional e órgãos de impressa em geral publicaram reportagens sobre os possíveis benefícios desse achado. Mas antes de falar sobre esta miocina cabe entender um pouco sobre os mecanismos que possam proporcionar tais resultados.
A extração de energia dos nutrientes para a ressíntese de ATPs depende de sistemas extremamente refinados e estruturas especializadas para realizar tal função. É sabido que a glicólise e o ciclo de Krebs não produzem muitos ATPs. No entanto, eles produzem vários NADH e FADH2, proteínas carreadoras de elétrons de alta energia que foram extraídos da matéria orgânica. No interior das mitocôndrias, mais especificamente na crista mitocondrial, estas proteínas transportadoras de elétrons, entregam elétrons energizados a um complexo de proteínas especializadas em seu transporte. Durante o transporte os elétrons, prótons localizados no interior da mitocôndria são bombeados para o espaço intermembranas, criando um potencial elétrico positivo em relação ao interior da mitocôndria. Estes prótons bombeados retornam por um complexo enzimático chamado ATP sintetase, havendo ressíntede de ATP (união de ADP + Pi), através de um movimento mecânico (giro) (Pereira et al., 2011).
Acontece que parte destes prótons “vazam” através de proteínas localizadas nas membranas das mitocôndrias e produzem uma energia “fútil”, gerando calor e aumentando a oxidação de gorduras e carboidratos, por exigir a maior oxidação destas moléculas para produção de energia. Estas proteínas denominadas UCPs (proteínas desacopladoras da fosforilação) estão localizadas em diversos tecidos sendo que nos músculos sua isoforma é a UCP3 e no tecido adiposo UCP1 (Depieri et al., 2004). Agora, por que o destaque para estas proteínas?
O exercício de forma crônica leva a um aumento da eficiência do complexo ATP sintetase e como conseqüência a uma diminuição da expressão da UCP3 nos músculos, fazendo com que o organismo ressintetize o ATP mais rapidamente a partir dos ADPs para as atividades celulares e se gaste uma quantidade menor de energia. Estes processos se dão no tecido adiposo branco, no tecido muscular e outros, porém não na gordura marrom. Este tipo de tecido é desprovido da ATP sintase e contém uma enorme quantidade de UCP1, o que faz dele uma fonte geradora de calor, já que não há armazenamento de energia na forma de ATPs. O vazamento integral de prótons aumenta a termogênese e conseqüentemente exige a oxidação de nutrientes, além de participar na regulação da temperatura corporal (Depieri et al., 2004). A concentração elevada de uma enzima da cadeia respiratória denominada citocromo oxidase é o que dá a coloração mais escura próxima do marrom a este tecido (Cannon et al., 2004)
Em fetos e recém nascidos humanos, em alguns mamíferos que hibernam e roedores, pela necessidade de manutenção da temperatura corporal, o tecido adiposo marrom está mais expresso. Em humanos adultos a quantidade de tecido marrom é muito reduzida correspondendo somente a aproximadamente 5% do tecido de gordura corporal. Van Marken Lichtenbelt e colaboradores relatam que a quantidade de gordura marrom em humanos é ainda menor em indivíduos com sobrepeso e obesos e que esta relação é inversa a quantidade de gordura corporal e ao IMC (Van Marken Lichtenbelt et al., 2009)
Atividades de baixa intensidade parecem aumentar a eficiência da ressíntese de ATPs diminuindo a quantidade de UCP3. Isto acontece também com atividades de alta intensidade, mas a queda na quantidade destas proteínas acontece em menor escala (Boss et al., 1998; Tonkonogi et al., 2000)
Mas onde a Irisina entra no processo?
A irisina é um hormônio secretado pelos miócitos com o objetivo de mediar efeitos benéficos do exercício no metabolismo energético. A via molecular envolvida no aumento da irisina passa por outra proteína chamada PGC1 alfa (Co-ativador-1 'alfa' do receptor ativado por proliferador do peroxissoma) (Handschin et al., 2008). A relação do PGC1 alfa com a irisina foi demonstrada quando ratos knockout para o PGC1 alfa diminuíram os níveis da irisina em mais de 70% (Boström et al., 2012). Dentre inúmeros processos biológicos em que está envolvida, sobretudo no metabolismo energético, esta proteína também eleva a expressão de uma proteína de membrana denominada FNDC 5 (proteína contendo o domínio 5 da fibronectina do tipo 3). Sua ação é mediada por um receptor nuclear denominado PPAR gama, que quando clivada daria origem a Irisina. A Irisina por sua vez, seria liberada na circulação, chegaria ao tecido adiposo branco o que aumentaria a expressão de UCP1, o que também é mediado pelo PPAR gama, transformando-o em uma isoforma do tecido marrom, em um processo denominado browning, que aumenta o gasto energético (Boström et al., 2012; Pedersen et al., 2012).
Alguns estudos têm demonstrado que o aumento da expressão do PGC1 alfa em ratos modificados geneticamente, faz com que eles se tornem mais resistentes a obesidade e ao diabetes (Wenz et al., 2009; Handschin e Spiegelman, 2008). Só que o mais interessante é que a atividade física também pode ser um agente capaz de aumentar PGC1 alfa, o que pode desencadear o processo favorável, em teoria, para aumento da irisina (Tjønna et al., 2008).
Estudos sobre a ação da irisina são muito recentes. Sabe-se que o exercício é um agente que aumentaria sua expressão, mas a quantidade e intensidade ainda precisam ser mais bem estudadas juntamente com as extensões dos resultados assim como a cascata de reações que o sucedem, para que se possa obter melhoras expressivas no quadro da perda de peso (Boström et al., 2012)
Tais fenômenos ainda não estão tão bem esclarecidos em humanos quanto estão em ratos. Por exemplo, Boström et al. (2012) demonstraram em ratos um aumento de 3 a 4 vezes na quantidade de Irisina no plasma, levando a alteração do fenótipo do tecido adiposo branco, em um experimento no qual foi aumentada a expressão da FNDC5 por meio de modificação genética. Este aumento foi acompanhado de uma elevação de 13 vezes na quantidade de UCP1 nos depósitos de gordura subcutânea dos animais, com aumento no consumo de oxigênio, redução não significativa no peso corporal e melhoria do perfil glicêmico. Vale ressaltar que neste experimento os ratos foram submetidos a dietas hipercalóricas, o que pode justificar a pequena perda de peso encontrada, porém a intervenção agiu prevenindo o ganho diante da alimentação excessiva. Um importante aspecto a ser observado é que a Irisina expressa em ratos é idêntica a expressa em humano (Boström et al., 2012).
Boström e colaboradores (2012) submeteram oito homens há um treinamento ergométrico com 20 a 35 minutos a 65% do Vo2 máx. durante 10 semanas, 4 a 5 vezes por semana. Os resultados demonstraram um aumento na quantidade de Irisina circulante duas vezes maiores após o período de treinamento. Por outro lado, Timons et al. (2012) falharam ao detectar um aumento na expressão do FNDC5 em indivíduos jovens submetidos um treinamento de endurance em cicloergômetro, e em indivíduos jovens e idosos submetidos a sessões de treinamento de força , afirmando que quando o aumento da expressão acontece, isto se daria somente em um pequeno grupo de sujeitos fisicamente ativos, questionando o trabalho de Boström, por meio da afirmação que o aumento do FNDC5 não seria significativo, o que sugere que esta proteína não seria chave no processo (Timons et al., 2012). Porém em resposta, Boström questionou os resultados de Timons, atribuindo falhas em diversos procedimentos e nas análise dos dados e da interpretação dos resultados (Boström et., al 2012).
Huh et al., (2012), realizaram um grande estudo, procurando encontrar parâmetros metabólicos e antropométricos para um melhor entendimento sobre a expressão da Irisina no organismo. O grupo de pesquisadores encontrou relação positiva entre a quantidade de massa muscular (circunferência dos braços) e os níveis de Irisina circulantes, sugerindo a massa muscular como o mais importante preditor da expressão desta miocina. No entanto, também parece haver diferenças individuais na capacidade do músculo atuar na irisina, pois ex obesos que foram submetidos à cirurgia bariátrica expressavam uma quantidade menor de irisina, quando tinham sua massa muscular ajustada pelo peso corporal. Neste mesmo estudo foi verificado que após sessões de sprints os níveis de Irisina ficavam significativamente superiores ao repouso, porém somente de forma aguda. De forma crônica os achados não demonstraram valores superiores para o grupo que realizou exercício em relação ao controle.
Há pouco tempo atrás, no início da década de 90, com a descoberta da leptina esperava-se ter encontrado a solução para os problemas da obesidade, mas o tempo mostrou que este era apenas um gene expresso pelo tecido adiposo e que embora sua descoberta pudesse auxiliar no tratamento da doença, ainda faltava determinar quais os caminhos moleculares a percorrer. O futuro parece muito promissor no que diz respeito ao melhor entendimento, em nível molecular, de como a atividade física atua para melhorar a saúde dos indivíduos, e a irisina está entre uma das proteínas que fará parte deste entendimento.
É preciso ter cautela com os resultados e seus possíveis efeitos milagrosos no metabolismo energético, pois os estudos são recentes e a magnitude do impacto sobre a obesidade ainda não foi documentado de maneira expressiva. De qualquer forma, mais uma vez é possível constatar que a pratica regular de exercícios podem trazer benefícios no tratamento de diversas patologias e na obesidade.
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