Propriocepção na reabilitação e prevenção de lesões no esporte2

Por Bruno Fischer

15 de fevereiro de 2013

Propriocepção e lesões de tornozelo 2

Continuação da primeira parte

Uma das lesões mais comuns no meio esportivo é o entorse de tornozelo em inversão (ou lateral), e estima-se que entre 70-80% dos atletas acometidos por essa lesão sofrerão um entorse recorrente. Sinais de instabilidade residual ocorrem em 20-40% dos indivíduos após terem sofrido esse tipo de entorse, e essa instabilidade a longo prazo pode predispor ao surgimento de artrose na articulação do tornozelo(1). A instabilidade residual parece ser a principal causa da recorrência do entorse em inversão, sendo que essa instabilidade pode ser de origem mecânica ou funcional(2). A instabilidade mecânica ocorre quando existe uma anormalidade anatômica da articulação do tornozelo, como por exemplo uma frouxidão ou movimentação excessiva da articulação subtalar, talocrural ou tibiofibular, resultante de danos ligamentares da articulação(2). Já a instabilidade funcional é descrita como uma sensação de “falseios” ou instabilidade do tornozelo(3) que ocorre sem necessariamente uma lesão ligamentar, mas que pode estar relacionada com danos nos mecanoreceptores dos ligamentos laterais ou tendões de músculos adjacentes ao tornozelo, o que acaba interferindo negativamente no reflexo proprioceptivo. Mais da metade dos pacientes com instabilidade crônica do tornozelo não tem evidência clínica ou radiológica de instabilidade mecânica.

Hupperets et al(4) conduziram um estudo com 522 atletas que sofreram entorse do tornozelo (256 no grupo intervenção e 266 no controle) e verificaram que um programa de exercícios proprioceptivos realizados em casa por 8 semanas reduziu em 35% o risco de recorrência do entorse.
Verhagen e colaboradores(5) acompanharam 116 equipes de voleibol durante a temporada de 2001-2002, sendo que do total 66 equipes fizeram parte do grupo intervenção e outras 50 foram do grupo controle. As equipes do grupo intervenção, além da rotina normal de treinamento, realizaram exercícios de equilíbrio no giro-plano (tábua de propriocepção). Ao final da temporada, quando comparado com o grupo controle, notou-se uma menor taxa de entorses de tornozelo no grupo que realizou treino proprioceptivo, entretanto essa redução no risco de entorse só foi significativa nos indivíduos com histórico prévio de entorses. Os resultados deste estudo levaram os autores a concluir que exercícios proprioceptivos no giro-plano apenas são eficazes para reduzir o risco de entorses recorrentes, mas não o primeiro entorse. Uma possível explicação para esse fato é que os exercícios de equilíbrio (propriocepção) apenas beneficiaram os jogadores com alterações nos mecanismos proprioceptivos.

McGuine e Keene(6) realizaram um estudo com objetivo de verificar a incidência de lesões no tornozelo de atletas escolares nas modalidades futebol e basquetebol quando submetidos a treino proprioceptivo. No total 765 atletas foram aleatoriamente direcionados para um dos dois grupos: o grupo intervenção (373 atletas) participou de um programa de treinamento de equilíbrio enquanto o grupo controle (392 atletas) manteve suas atividades desportivas rotineiras. Os resultados desse estudo demonstraram que a taxa de entorse de tornozelo foi significativamente menor nos indivíduos do grupo intervenção. Ao comparar indivíduos com história prévia de entorse de tornozelo, se percebeu que esses indivíduos tinham duas vezes mais chance de sofrer novo entorse, e quando eram submetidos ao treinamento proprioceptivo esse risco caia pela metade. A taxa de entorse de tornozelo em atletas sem história prévia de lesão foi menor após o treino proprioceptivo, entretanto não foram encontradas diferenças estatísticas entre os grupos controle e intervenção.

Uma meta-análise conduzida por Postle e colaboradores(7) concluiu que a adição de exercícios proprioceptivos durante um programa de reabilitação não foi capaz de prevenir lesões recorrentes em indivíduos com lesões ligamentares em tornozelo. Entretanto a inclusão de treinamento proprioceptivo reduziu de forma significativa a percepção de instabilidade no tornozelo e promoveu melhoras funcionais. Os autores desse estudo concluíram que ainda não existe um consenso na literatura acerca das vantagens em se incluir treino proprioceptivo na reabilitação do tornozelo.

Propriocepção e fortalecimento do CORE

O termo core tem sido utilizado para se referir aos músculos e outros tecidos da região do tronco, mais especificamente da região lombo-pélvica. A estabilidade da região lombo-pélvica é crucial para permitir uma movimentação harmoniosa de membros inferiores e superiores, para suportar carga, e principalmente proteger a coluna vertebral de danos que possam comprometer a integridade da medula espinhal e raízes nervosas (8). A estabilidade do core pode ser definida como a capacidade que os músculos, ligamentos e órgãos proprioceptores tem em manter a zona intervertebral neutra dentro de limites fisiológicos (9). A perda do controle da zona neutra pode causar lesões, discopatias degenerativas e fraqueza muscular. Um déficit no controle neuromuscular da região core também pode comprometer a estabilidade dinâmica de membros inferiores, resultando em maior torque do joelho em abdução, causando maior tensão ligamentar e aumentando de maneira significativa o risco de lesões nos joelhos.

A estabilidade dinâmica do joelho de um atleta depende da habilidade da articulação em manter a trajetória programada após perturbações internas e externas, sendo para isso necessário respostas sensoriais e motoras apropriadas do tronco para interagir com as rápidas mudanças na posição corporal que ocorrem em diversas manobras esportivas, tais como arrancadas, freadas bruscas, aterrisagens, etc(10).

Diversos estudos tem demonstrado que exercícios direcionados para aumentar a estabilidade do core podem reduzir a propensão de lesões de membros inferiores e dores em coluna lombar (8,11-17). Exercícios proprioceptivos, ou seja, realizados em superfícies instáveis e/ou com perturbações parecem ativar com maior intensidade a região do core(8), fortalecendo e dando resistência aos músculos, bem como aprimorando as respostas proprioceptivas dessa região.

Behm e colaboradores demonstraram que exercícios direcionados ao tronco realizados na bola suíça resultaram em uma maior ativação dos músculos abdominais inferiores quando comparados com os mesmos exercícios realizados em superfície rígida(18). Da mesma forma Vera-Garcia e colaboradores compararam a execução de exercícios em superfícies rígidas com superfícies instáveis, e concluíram que exercícios realizados em superfícies instáveis promoveram uma maior ativação dos músculos abdominais e do oblíquo externo, levando a um maior estímulo para desenvolver força e estabilização da coluna (19).

Marshall e Murphy encontraram um aumento significativo na atividade eletromiográfica do reto abdominal, transverso abdominal e oblíquos internos durante a execução de exercícios para estabilidade do core realizados na bola suíça, valores superiores aos encontrados nos mesmos exercícios realizados em superfície estável(20). Vale ressaltar que o aumento na atividade eletromiográfica encontrada nesses estudos sempre comparou esses exercícios sendo realizados apenas com o peso corporal, ou com a mesma carga absoluta.

Behm e colaboradores também avaliaram a capacidade de produção de força e ativação muscular de exercícios realizados em superfície rígida e em superfície instável (bola suíça) e puderam observar que ao realizar os exercícios na bola suíça a força produzida na extensão de joelhos e flexão plantar era 70,5 e 20,2% menor do que em superfície rígida, respectivamente. A ativação eletromiográfica também foi 44,3% (quadríceps) e 2,9% (flexores plantares) menor nos exercícios realizados em superfície instável. Os autores do estudo concluíram que quando a superfície é muito instável a produção de força periférica (ex. membros inferiores) é reduzida enquanto a força na região core é aumentada, dessa forma esse tipo de exercício é insuficiente para ganhos de força nos membros, mas parece aprimorar o equilíbrio, estabilidade e capacidade proprioceptiva (21).

Uma revisão publicada em 2010 avaliou diversos estudos que incluíam exercícios realizados em superfícies instáveis e em superfícies rígidas, tendo como o foco a ativação do core. Os autores concluíram que apesar de exercícios realizados em superfícies instáveis se mostrarem eficientes para reduzir a incidência de dor lombar e aumentar a eficiência sensorial de tecidos moles, eles não são recomendados como exercícios primários para hipertrofia, força absoluta ou potência, especialmente em atletas. Para praticantes avançados ou atletas, exercícios com peso livre realizados em superfícies rígidas com nível moderado de instabilidade (ex. agachamento livre executado com barra ao invés de executado no Smith ou hack) devem formar a base de exercícios para treinar a musculatura do core. Exercícios em superfícies instáveis podem ter uma importante função para indivíduos iniciantes ou em reabilitação, ou como alternativa de exercícios para indivíduos com pouco interesse em se exercitar com pesos livres (22).

Os exercícios de musculação tradicionais podem ser considerados funcionais e com grande capacidade de desenvolver a estabilização do core. Para isto basta realizar algumas alterações na forma de executá-los, tais como: preferir peso livre ao invés de máquinas, realizar os exercícios em pé ao invés de sentado, exercícios unilaterais ao invés de bilaterais, e por fim, escolher exercícios básicos como agachamento, levantamento terra, stiff, desenvolvimento com halteres, etc.

Atletas e indivíduos saudáveis que realizam os exercícios básicos já recebem estímulo suficiente para o fortalecimento do core, não necessitando de exercícios em superfícies instáveis ou com perturbação externa.

Considerações finais

A partir do exposto no presente artigo pode-se concluir que os proprioceptores tem um papel fundamental no controle neuromotor, permitindo uma adequada manutenção da estabilidade articular e proporcionando proteção contra lesões. O treino proprioceptivo parece ter um papel importante na reabilitação de lesões no esporte, visto que os órgãos proprioceptores são danificados nos processos lesivos e precisam ser novamente treinados durante o processo de reabilitação. No entanto, o papel do treino proprioceptivo na prevenção de lesões ainda é controverso, visto que a maioria dos estudos não demonstrou efeitos significativos na redução da incidência de lesões em atletas sem histórico de lesão prévia. Além disso, a maioria dos estudos não isola o treino proprioceptivo de suas intervenções, e sim, o utiliza em conjunto com treinos neuromusculares, que são compostos na maioria das vezes por exercícios resistidos, pliométricos, treinos de flexibilidade e outros.

Será que apenas os exercícios proprioceptivos isolados, ou melhor, exercícios com perturbações externas e/ou em superfícies instáveis, tem um papel importante para a prevenção de lesões no esporte? Os treinos esportivos tradicionais já não apresentam componentes suficientes para treinar os proprioceptores? Quando observamos um treino ou jogo de futebol notamos uma gama de movimentos capazes de treinar os proprioceptores com maestria, uma vez que essa modalidade é basicamente composta de arrancadas, mudanças bruscas de direção, saltos, trombadas, terreno irregular, etc.
O que notamos hoje em dia é que muitos profissionais estão numa constante e desenfreada busca por métodos ou treinos “diferentes” e muitas vezes tais metodologias são infundadas ou mal aplicadas. As academias foram invadidas por “treinos funcionais”, dessa forma não é incomum vermos jovens, que buscam melhora da força e hipertrofia, trocando o agachamento com barra livre por um agachamento sem peso realizado em cima do bosú. Os exercícios básicos já são totalmente eficientes para promover melhoras funcionais na maioria das pessoas, da mesma forma os gestos esportivos dos treinos convencionais parecem ser suficientes para treinar os mecanismos proprioceptores. Certamente treinos em superfícies instáveis tem a sua aplicabilidade, entretanto essa parece ser restrita a reabilitação de lesões ou direcionada para indivíduos com determinadas restrições.

Referências bibliográficas

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